sábado, 1 de dezembro de 2007

14. O Desenho



O desenho tem me acompanhado por todos esses meus quase 68 anos. Nasci filho, sobrinho e neto de desenhistas. Meu avô, meu tio Hélio e meu pai tinham um escritório de prestação de serviços de desenho técnico na década de 20 do século passado, chamado Elipse. Naquela época, o escritório deles era o mais famoso do Rio de Janeiro. Todos os três eram excelentes desenhistas. O tio Hélio foi mais além e acabou se formando arquiteto. Meu pai, além do trabalho preciosista que fazia para seus clientes, era um artista talentosíssimo. Pintor acadêmico que conquistou todos os prêmios possíveis nos salões anuais realizados pelo Museu Nacional de Belas Artes, tanto em suas seções de pintura quanto de desenho.



Pintor acadêmico ou desenhista, ele era mestre em seus ofícios. Estes são apenas alguns de seus milhares de trabalhos, alguns dos quais tive o privilégio de ser seu colaborador, tendo antes sido aluno humilde e aplicado.





Nasci em Corumbá pois foi para lá que ele foi como chefe da seção de desenho da Comissão Mista Ferroviária Brasileiro-Boliviana para a construção da Estrada de Ferro Brasil-Bolívia. A maior parte dos trabalhos que meu pai fazia eram de cartografia. Ele tinha um grande atelier em nossa casa com uma grande prancheta e todo o equipamento com o qual realizava seus trabalhos a partir de encomendas que recebia de seus clientes. Quando ele percebeu que eu também apresentava um certo talento para aquele ofício, começou a me ensinar os truques da profissão para que eu pudesse ajudá-lo. Ele era muito rigoroso. Me ensinou caligrafia técnica, pois naquela época tudo num desenho, além dele próprio, era feito à mão. Ele tinha um manual de tipos de letras que eu copiava usando uma pauta de quatro linhas. Além da caligrafia ele me iniciou no manuseio da principal ferramenta do desenhista de então: o tira-linhas, que era um instrumento delicado no qual se colocava tinta nanquim e se regulava a espessura do traço para desenhar linhas. Ele é o que se vê na fotografia do início desta postagem. Meu pai me dava como exercício, entre outros, o de desenhar com o tira-linhas dez linhas paralelas sem que estas se tocassem, dentro do espaço de um milímetro e depois vinha com uma grande lente de aumento que tinha, para conferir o resultado. Ou seja, cada linha tinha que ter menos de 1/10 de milímetro de espessura e ainda tinha que haver um intervalo menor do que isso entre elas. Muito difícil, mas possível. A caligrafia também era rigorosamente avaliada e criticada por ele até que eu conseguisse uma uniformidade de valores nos traços ascendentes e descendentes, nas curvas das letras, nas ligaduras entre elas e em outros detalhes. Em dado momento eu já estava pronto para ajudá-lo e o fazia com muito orgulho, dividindo sua grande prancheta com ele num mesmo trabalho. Depois de ter trabalhado com meu pai nos mais variados tipos de desenho técnico, ainda adolescente fui trabalhar como desenhista de um arquiteto nosso vizinho, o Paulo Alberto Vianna Rodrigues, e um entre outros projetos dele que desenvolvi e desenhei, foi o do Teatro Nacional de Comédia, na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, que desenhei desde as fundações até a cobertura, com todos os pavimentos, cortes e fachadas. Mais tarde, trabalhando na Companhia Siderúrgica Nacional, embora meu trabalho lá não fosse de desenhista, o meu chefe, um francês muito distinto chamado Dr. Maurice Lamaziérè também não me lembro como, descobriu meus dotes de desenhista e me pediu para desenhar as plantas de um navio, o "Siderúrgica 10" que ele tentava fazer com que a Companhia fizesse construir. Ainda enquanto funcionário da CSN fui surpreendido sozinho em minha sala por um senhor que abriu a port e me pegou em flagrante com um avião de papel nas mãos pronto para jogá-lo pela janela. Perguntou e anotou o meu nome. Pensei: pronto, deve ser algum diretor, estou demitido. No dia seguinte sou procurado por um entregador com uma caixa embrulhada para presente. Abri-a e ela continha um aeromodelo para ser montado e um bilhete que dizia mais ou menos o seguinte: Caro Carlos, comprei este aeromodelo durante uma viagem que fiz aos Estados Unidos e nunca tive tempo de montá-lo. Espero que você consiga fazê-lo e divirta-se com ele. Assinado, Comandante Paulo Bracie. Fui saber quem era esse tal Comandante Paulo Bracie e descobri tratar-se de um dos diretores do Estaleiro Mauá, em Niterói. No mesmo dia liguei para ele agradecendo o presente e marcando uma visita no dia seguinte. Fui e pedi a ele um emprego de desenhista no Estaleiro. Consegui-o imediatamente. Demiti-me da CSN e na semana seguinte começava no Estaleiro Mauá em Niterói. Lá fui eu de volta para a prancheta, desta vez para desenhar peças de navios para serem confeccionadas nas oficinas do Estaleiro Mauá. Era 0 ano de 1963 e o Estaleiro tinha centenas de operários (eu entre eles) que na época controlavam sindicatos poderosos no governo do Presidente João Goulart. Todos os dias, após o almoço, havia grandes reuniões dos operários dentro do dique que funcionava como uma espécie de anfiteatro, onde os líderes do movimento sindical vinham dar os últimos informes sobre o desenrolar dos acontecimentos em Brasília que acabaram por derrubar o governo e instalar a ditadura. Saí do Estaleiro e fui trabalhar com o arquiteto Affonso Junqueira Accorsi em seu escritório na praia de Icaraí. Aprendi muito com ele. Seu escritório estava atravessando algumas dificuldades e acabei por deixá-lo, indo trabalhar por conta própria pela primeira vez, associado com outro desenhista, o Matheus. Juntos fizemos centenas de trabalhos daquilo que na época se chamava de "planta humanizada", que eram plantas dos apartamentos postos à venda em estandes pretenciosos dos lançamentos das grandes construtoras cariocas que aproveitavam um grande "boom" imobiliário. Gomes de Almeida Fernandes, que hoje se chama Gafisa, Veplan, que nem existe mais, CMI - Consorcio Mercantil de Imóveis que também desapareceu, assim como outras grandes construtoras cariocas. Matheus e eu inventamos um tipo de desenho até então inédito que era construído não mais desenhando-se sobre papel, mas sim colando-se varetas de balsa no lugar das paredes e colando-se as peças da decoração (camas, mesas, armários, etc.) feitos de cartões coloridos e imitando madeira. No final tinha-se uma planta como se o apartamento tivesse sido cortado e se pudesse ter uma idéia aproximada de como ele seria, uma vez pronto. Depois dessa experiência de um trabalho que ficava entre o desenho e a maquete, fui trabalhar num escritório de cálculo estrutural, isto é, calcular a ferragem necessária para a estrutura de um prédio e desenhar as formas onde elas seriam colocadas junto com o concreto. Trabalho sujo. Terminava o expediente com os braços completamente sujos de grafite por baixo, uma vez que as plantas eram feitas a lápis. Todas essas experiência como desenhista me deram uma grande base e vantagem em meus anos de curso superior e no resto de minha vida profissional.
Um outro lado do meu desenho pode também ser visto aqui.

Um comentário:

Anônimo disse...

Caloga
Essas suas histórias são ótimas de ler!
A história na casa do Dr. Cheferrino é muito boa! :)
Vou passar aqui todo dia para me deleitar!
beijos
Alice